sexta-feira, 15 de abril de 2016

2.2 Princípios específicos - contratos agrários

2.2 Princípios específicos - Os arts. 95 e 96 do Estatuto da Terra impuseram como de caráter obrigatório os comandos descritos em seus incisos, denominando-os de princípios. Como princípios foram colocados para que fossem obedecidos na edição do regulamento. De fato deu organicidade ao tema, derivando o Decreto 59.566/66. Contudo ao se referir às relações intersubjetivas, como está posto nos artigos supra, na verdade devem ser reconhecidos como diretrizes fundamentais na elaboração e execução dos contratos agrários, uma vez que deles não há como se extrair tão-somente abstrações gerais, como ocorre na maioria dos princípios norteadores do direito, sejam eles gerais ou específicos. É por isso que não podemos desprezar outras posições que os consideram apenas como regras materiais ou substantivas, imperativas/cogentes, de aplicação obrigatórias.

2.3 Relativamente à interpretação dos contratos agrários e aplicação das regras jurídicas de plano cabe notar a dificuldade quando estes princípios de ordem privada tais como a vontade ou liberdade das partes, entram em aparente conflito, afrontando prescrições de ordem pública, como as leis agrárias especiais, que nesta obra investigamos.

No campo da hermenêutica o assunto tem dado trabalho aos pesquisadores. Carlos Maximiliano[1] assim conduz o tema, vejamos: “A distinção entre prescrições de ordem pública e de ordem privada consiste no seguinte: entre as primeiras o interesse da sociedade coletivamente considerada sobreleva a tudo, a tutela do mesmo constitui o fim principal do preceito obrigatório; é evidente que apenas de modo indireto a norma aproveita aos cidadãos isolados, porque se inspira antes no bem da comunidade do que no indivíduo; e quando o preceito é de ordem privada sucede o contrário: só indiretamente serve o interesse público, à sociedade considerada em seu conjunto; a proteção do direito do indivíduo constitui o objetivo primordial. Os limites de uma e outra espécie têm algo de impreciso.”.

2.4 Desse modo e antes de tudo, devemos sempre ter em mente os comandos normativos que já conhecemos desde os tempos de iniciação acadêmica. Falamos, é claro, daqueles que basicamente inserem no texto legal a função de: ordenar, proibir, permitir, punir, surgindo daí a tradicional classificação das leis em imperativas, proibitivas, permissivas e punitivas.

 2.5 As normas reguladoras dos contratos agrários devem ser atentamente examinadas, uma vez que podem se revestir de mais que um dos comandos acima, predominando a função imperativa. É com esse cuidado que devemos operar os instrumentos contratuais no mundo fático das relações agrárias.

2.6 No tocante aos processos ou métodos de interpretação da lei, propriamente dito, relativo ao sentido e alcance da norma onde temos como exemplo o método gramatical, lógico, sistemático, teleológico, histórico etc., em parte abstraímos deste estudo por entendermos não ser o objeto principal. Nesse campo existe uma infinidade de manuais que poderão ser consultados com facilidade. Contudo não podemos afastar a assertiva de que os contratos agrários que não atenderem o padrão normativo devem ser interpretados levando-se em consideração os fatores sociais que circundam a vida campesina de onde derivou o pacto, como modalidade de interpretação plenamente aceita.

Por outro lado, nos contratos de relações formais, também não poderíamos deixar de colocar, como dito anteriormente, a possibilidade da existência de conflito aparente de normas incidentes sobre determinadas questões que se tornam ou se tornaram controvertidas entre as partes. Nesse passo temos matéria exaustivamente abordada na obra Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bóbbio[2], quando em determinado momento de seu estudo sugere regras para a solução de antinomias: “As regras fundamentais para a solução das antinomias são três: a) critério cronológico; b) o critério hierárquico; o critério da especialidade”. 

De posse dessa assertiva, o operador do direito ao se defrontar com mais de uma norma para a solução do caso, certamente irá submetê-las as regras supra, caso haja aparente conflito.

Ainda no dizer de Bobbio[3] 
"Todas as fases de um ordenamento são, ao mesmo tempo, executivas e produtivas. (...) O grau mais alto é constituído pela norma fundamental: essa é somente produtiva e não executiva. (...) Esse duplo processo ascendente e descendente pode ser esclarecido também em duas outras noções características da linguagem jurídica: poder e dever. Enquanto a produção jurídica é a expressão de um poder (originário ou derivado), a execução revela o cumprimento de um dever."

Com esse ensinamento o pensador colocou de forma clara o critério da hierarquia da norma, especialmente a questão da constitucionalidade freqüentemente levada ao judiciário, onde a norma ordinária poderá conflitar com a Constituição Federal, provocando o conflito hierárquico.

Tal preocupação tem razão de ser, ocorre que, compulsando a Constituição Federal em seu Capítulo III que dispõe “Da Política Agrária e Fundiária e Da Reforma Agrária”, observamos que o Estatuto da Terra foi recepcionado formal e materialmente como lei ordinária. É correto afirmar isso, uma vez que a única ordenação formal de produção legislativa com quorum qualificado determinada pelo Legislador Constituinte, refere-se à edição de Lei Complementar e diz respeito apenas ao processo judicial de desapropriação, § 3º do art. 186 da Constituição Federal de 1988. Em relação aos demais temas agrários a lei ordinária atende ao comando Constitucional para regulamentar a Lei Maior.  Portanto, no que concerne ao critério da hierarquia das normas, o Estatuto da Terra está caracterizado como lei ordinária, porém especializado em relação às matérias autorizadas ou não proibidas pela Constituição Federal. Essa visão se faz necessária, uma vez que, em certos assuntos, leis ordinárias anteriores ao texto Constitucional adquiriram com sua promulgação o status de lei complementar, já em relação ao Estatuto da Terra isso não se faz necessário porque a CRFB assim não exigiu.


 Dando prosseguimento ao tema relacionado à hierarquia das leis, sabemos que quando da ocorrência de antinomia entre dois dispositivos, em tese de mesma hierarquia, outra solução poderá ser adotada, ou seja, a que consiste na aplicação do Princípio da Especialidade. A ilustre jurista MARIA HELENA DINIZ[4], ensina nos seus estudos referentes aos critérios para a solução dos conflitos de normas (Obra: Conflito de Normas, pág. 33, 5. ed - São Paulo: Saraiva, 2003), "verbis":
" Se, como nos ensina Hans Kelsen, para haver conflito normativo as duas normas devem ser válidas, pois se uma delas não for, não haverá qualquer antinomia, já que uma das normas não existiria juridicamente."
Diz ainda a ilustre doutrinadora:
            " C) O de especialidade (lex specialis derogat legi generali), que visa a consideração da matéria normada, com o recurso aos meios interpretativos. Entre a lex specialis e a lex generalis há um quid specie ou uma gens au speci. Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes "

Continuando com Maria Helena Diniz na sua já citada obra, agora em pág 50, no título Antinomias de segundo grau e os metacritérios para a sua resolução, assim propõe:
            " Ter-se – á antinomia de antinomias, ou seja, antinomia de segundo grau, quando houver conflito entre os critérios:
            ................
            b) especialidade e cronológico, se houver uma norma anteriormente especial conflitante com uma posterior-geral; seria a primeira preferida pelo critério de especialidade e a segunda, pelo critério cronológico,.........."


2.7 - Dualismo “Direito e Estado” e a legitimidade da vinculação dos Contratos Agrários ao Direito Positivo
Ainda que não estejamos apregoando nem desmerecendo as regras de direito formal e material, é salutar incutir que o direito no Juspositivismo também consiste na limitação do Estado pelo Direito, e tem a lei como seu ápice. É com esse pressuposto que as relações contratuais no direito agrário deverão ser tratadas, uma vez que são densamente regulamentados pelas regras positivas inseridas no sistema jurídico que por sua vez decorre do atual Estado Democrático de Direito, situação que o Brasil procura preservar como conquista da nação.
2.8 Assim, para que tenhamos compreensão do assunto (contratos agrários) que se encontra cercado por um conjunto de normas, o Estado deve ser conhecido posto ser o principal agente produtor delas. As buscas da definição do Estado e sua relação com o Direito são incessantes. Vale ressaltar as principais colocações teóricas seguidas pelos pensadores.
A respeito do que seja Estado e Direito acentua BASTOS[5] com síntese e maestria: “O Estado e o Direito. O Direito precede ao Estado, doutrina o jusnaturalismo; Direito e Estado se confundem, assevera o positivismo jurídico.”
Consoante Afonso Arinos[6] :
 "O Jusnaturalismo aceita a supremacia básica do direito sobre o Estado, na questão dos direitos do homem. O juspositivista afirma a supremacia do Estado sobre o direito, (...) Não podemos deixar de observar, no entanto, que a teoria da autolimitação do Estado, exatamente por não reconhecer a precedência, sobre seu poder, de algumas condições específicas da personalidade humana, oferece menos segurança de estabilidade das liberdades individuais do que as teorias jurídicas ou metajurídicas, que afirmam a limitação do Estado pelo Direito."

2.9 A preocupação deste relato doutrinário reside em justificar ou submeter o Estado aos desígnios do direito, objetivando a segurança e estabilidade das liberdades individuais e coletivas através do direito legislado, culminando, por ato decorrente, em justificar também as regras incidentes sobre os Contratos Agrários.
Por isso questionamos: qual o Estado que melhor atenderia esses ideais?
Sem dúvidas recorre-se aos ensinamentos de BOBBIO[7] em sua definição procedimental de Democracia, que segundo ele, é possível relatar que definiu o estado democrático como o conjunto de regras de procedimentos para a formação de decisões coletivas em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados - são regras jurídicas. 
Quanto ao direito e poder, diz ele que só o direito pode limitar o poder e só o poder pode criar o direito. Então quanto às regras de procedimentos pode se afirmar à assertiva de que só o autorizado pode tomar as decisões coletivas. E essa autorização é decorrente do próprio direito.
Segundo BOBBIO[8] : "O modelo ideal entre direito e poder é o Estado democrático de direito, isto é, o Estado no qual não há poder que não esteja submetido a normas que derivem do consenso ativo dos cidadãos".
Tem-se aqui que um Estado de Direito com a pretensão de dar segurança ao cidadão, deve ser democrático quanto à sua forma de governo no que se refere às atividades típicas de Estado, isso é, a execução, legislação e justiça, tendo como premissa o poder centrado no povo, este como detentor primário e originário do poder, onde se auto-ordena na produção do sistema jurídico. É o povo fazendo as regras jurídicas diretamente ou por meio de seus representantes periódicos, embora estes sejam meros fiduciários.

Retomando os dizeres de BOBBIO[9] pode se concluir que o mandatário é um fiduciário e não um delegado do eleitor, pois representam os interesses gerais, políticos.

2.10 Os contratos agrários são exaustivamente regrados por dispositivos legais, de modo que ao operador do direito resta o dever de estar sempre atento, ao iniciar seu contacto com o tema, à visão positivista do direito no sentido de obedecer em especial à hierarquia das normas, partindo da Constituição Federal até chegar ao instrumento individual que é o contrato, para que as normas de ordem pública, como no caso a Lei 4.504/66 e Decreto 59.566/66, não sejam renegadas.
Para KELSEN[10], um expoente do positivismo jurídico, a Constituição efetivamente erradia uma unidade na pluralidade das demais normas: "Como a norma fundamental é o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem jurídica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas.".
Disse Kelsen que a norma é desprovida de valor, distinguindo o mundo do “ser” e “dever ser”, no mundo do ser estão os fatos com suas mais variadas conotações.
Nessa linha de pensamento podemos afirmar que as questões relativas aos “valores” devem ser apreciadas pelos legisladores na elaboração da norma e vistos com muita restrição pelos operadores do direito na execução da norma.
Por esse motivo o operador do direito deve ter em mente num primeiro momento a norma como padrão de conduta, uma vez que no mundo dos negócios os contratos agrários freqüentemente podem levar o profissional do direito ao senso comum (enquanto cotidiano dos leigos), elaborando contratos sem o cuidado mínimo necessário pelo simples apego ao caso ou paixão à causa (valores cultuados no meio social), em que pese à relevância dos fatores sociais nas relações do meio rural.
Os Contratos Agrários obedecem a normas obrigatórias e imperativas, tendo em vista o interesse coletivo, daí porque o interprete deve levar em conta os “fatores sociais” sempre que não for possível aplicar a norma ou quando ela apresentar lacunas que não possam dar solução adequada ao pacto. Jamais se esquecendo da função social da propriedade consagrada na Constituição Federal a partir de 05 de outubro de 1988.

 Resgatando Aristóteles, a Lei é a razão liberta da paixão.




[1]              Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito. RJ: Forense, 2003, p.176.
[2]              Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento jurídico. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 10ª Ed., 1997. p.92.
[3]           BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento  Jurídico, Editora UNB, 1997,p.51.

[4]           Conflito de Normas, pág. 33, 5. ed - São Paulo: Saraiva, 2003.
[5]              BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 8.
[6]              FRANCO, Afonso Arinos de Melo.  Direito Constitucional (teoria da Constituição; as Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p.27.

[7]              BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio;  tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.18-21.
[8]              Fonte: DIÁRIO CATARINENSE - domingo 04 de outubro de 1998, p.3.

[9]              BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio; tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986. p.46-47.

[10]       KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo,  Martins Fontes,  1987. p. 220.

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